Por: Naara Letícia de Souza.
Fairclough (2006) afirma que as
pessoas têm suas próprias experiências da globalização em sua vida e reagem a
isso de modo muito particular e diverso. Ao se comunicarem com pessoas
distantes, usam mídias particulares que possuem códigos próprios, os quais
afetam o caráter da comunicação de maneira particular. Assim, a linguagem não
se apresenta apenas de modo escrito, pois é multimodal. A reconfiguração da
linguagem, torna determinados elementos no sentido mais próxima do real.
Através de áudio, recebi um
relato do meu pai, Benedito Ferraz de Oliveira, sobre a sua vivência com a
Estrada de Ferro Sorocabana onde meu avô, Octávio Ferraz de Oliveira,
trabalhava.
Relato:Quando eu era criança, entre os 8 e os 11 anos, meu pai era
feitor na Estrada de Ferro Sorocabana, mas entrou trabalhando com o serviço
mais básico e depois foi subindo dentro da meritocracia. O cargo mais alto no
ramo, seria mestre de linha categoria 1. Pela hierarquia, após atingir o cargo
de feitor, o próximo passo era mestre em categoria 2 e depois chegaria a mestre
de linha categoria 1.
Com seus quarenta e poucos anos, me
lembro que ele sempre teve um cuidado muito grande. Se jactava de que no trecho
de sua responsabilidade nunca houvera acidente por negligência da equipe de
trabalho com a qual chefiava. A equipe continha meu pai ou o encarregado de
linha e mais cinco trabalhadores cuidando de 20km/25km de trecho de linha,
incluindo uma estação. Eram conhecidos como a turma 43 e o interessante é que o
cunhado dele era o chefe da turma 44, linha vizinha. Cerca de 15 km da estação
do Rio Verde, onde morávamos (Itararé, SP).
Durante o período de aulas ficávamos
na cidade e nas férias íamos todos para lá. Quando tinha feriado prolongado, às
vezes eu e o meu irmão mais velho, João,ficávamos junto com o pai. O meu
trabalho era fazer o almoço dele e ir levar onde estivesse trabalhando. Me
dizia a direção e a distância para eu saber que horas devia sair. Com essa pouca
idade, eu já fazia a comida do meu pai e ainda ia levar sozinho.
Esperto que era, aproveitava para
ganhar uns troquinhos. Para que os outros trabalhadores não levassem comida
fria de manhã, suas mulheres me pagavam um dinheirinho e eu levava a comida de
todo mundo. Pegava um cabo de vassoura, botava assim nas costas, um prego nas
duas pontas para prender os caldeirõezinhos e saia com eles pendurados no ombro,
igual aqueles japonesinhos daqueles filmes antigos.
Um fato curioso e que me traz uma
reflexão muito grande é que o meu pai foi um grande herói para mim e para toda
a família, pois o vimos arriscar a vida dele para salvar a vida de uma pessoa.
Essa pessoa, chamávamos de Dito Soldado e era o guardador de chave.
Guarda chave na EFS era um cargo
de quem trabalhava na estação.Quando os trens vinham em sentido contrário e iam
cruzar com outro trem, um deles tinha que ficar no pátio da estação esperando o
outro passar, pois a linha era única. A prioridade era o trem de passageiros
que precisava ter liberdade direta, assim, os trens de carga aguardavam.
Através de um sistema de telegrafia, se comunicavam entre estações para saber o
tempo que o outro trem demoraria para chegar.
A responsabilidade era, através
de um sistema mecânico, mudar o sentido da linha.A capacidade de espera era de
até 3 trens. Em frente da nossa casa, ficava uma dessas Chaves. Ele puxava para
um lado e os trilhos, que possuíam duas agulhas,saiam de um lado e encaixavam em
outro trilho. O trem entrava por ali indo até o desvio para que o outro trem
pudesse passar normal. Então, caso aquela chave não fosse alterada, o trem
passaria direto e ia bater no outro que estava a caminho.
Na linha que passava pela nossa
casa, tinha uma descida grande que escondia o trem, um corte nas pedras. Um
dia, meu pai estava de folga no portão conversando com o Dito Soldado e um trem
de passageiro estava prestes a chegar em cerca de 10 minutos, assim como um trem
de carga, que tinha que entrar no pátio.O outro trem ia entrar no corte, não o
veríamos por uns 2 minutos e quando reaparecesse, já estaria na frente de casa.
Observando que o maquinista do
piloto estava buzinando um código que ele conhecia seguido daquela buzinada
longa, o ouvimos dizer: “Saia da chave que esse trem tá desembestado, tá sem
freio e não vai passar aqui”. O Dito Soldado respondeu: “Não! Eu não posso
deixar ele passar, porque se ele passar vai bater no outro trem. Eu tenho que
ficar aqui segurando. ”. Meu pai insistiu, insistiu e insistiu com ele até sair
do portão onde estava para falar: “Vamos sair. Daqui a pouquinho o trem vai
aparecer ali. Mesmo que você mude a chave, com essa velocidade que ele tá, não
vai conseguir entrar no desvio e você vai morrer! Vai cair tudo em cima de você!”. O Dito Soldado insistiu que tinha que ficar, porque era a função dele.
Assim, meu pai, guiado por Deus, sabendo que ele não ia
conseguir fazer aquilo, atravessou a linha, o agarrou pela cintura e saiu
correndo com ele pra um barranco de uns 4 metros. Neste momento, nós vimos o
trem saindo já há uns 300 metros daquele corte com mais ou menos 10 vagões
carregado de madeira, sacos de mantimento, de feijão e essas coisas. Foi uma
questão de segundos e o trem descarrilhou por onde os dois passaram. A máquina
passou, mas os vagões não. A queda fez uma montanha de umas duas casas de
altura. Um vagão ficou empinado na traseira do outro.
Começamos a gritar e chorar: "meu
pai morreu, meu pai morreu, meu pai morreu!". Cerca de 10 minutos, vimos os dois passando
por cima das madeiras e agradecemos a Deus por isso. Segundo seu Octávio, a
velocidade realmente não deixaria o trem entrar no desvio. Ele, percebendo que
o guarda chave não ia sair e acabaria morrendo, o agarrou e correu. Quando o
trem descarrilhou, disse que ficaram deitados no barranco e viram as toras
passarem por cima deles. Se não fosse isso, mesmo saindo da chave, ambos teriam
sido soterrados pelos destroços.
18 canhões modernos Krupp para a época, no pátio da Estação de Sengés a espera de ordem para bombardear Itararé. |
Itararé 1930/ Vila Sorocabana - EFS 1930 |
Fotos e relato de acervo pessoal.
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