segunda-feira, 25 de novembro de 2019

GRUPO 3 - DEPOIMENTO. A ESTRADA DE FERRO SOROCABANA A PARTIR DAS VOZES DA GLOBALIZAÇÃO

Por: Naara Letícia de Souza. 

Fairclough (2006) afirma que as pessoas têm suas próprias experiências da globalização em sua vida e reagem a isso de modo muito particular e diverso. Ao se comunicarem com pessoas distantes, usam mídias particulares que possuem códigos próprios, os quais afetam o caráter da comunicação de maneira particular. Assim, a linguagem não se apresenta apenas de modo escrito, pois é multimodal. A reconfiguração da linguagem, torna determinados elementos no sentido mais próxima do real.

Através de áudio, recebi um relato do meu pai, Benedito Ferraz de Oliveira, sobre a sua vivência com a Estrada de Ferro Sorocabana onde meu avô, Octávio Ferraz de Oliveira, trabalhava.

Relato:Quando eu era criança, entre os 8 e os 11 anos, meu pai era feitor na Estrada de Ferro Sorocabana, mas entrou trabalhando com o serviço mais básico e depois foi subindo dentro da meritocracia. O cargo mais alto no ramo, seria mestre de linha categoria 1. Pela hierarquia, após atingir o cargo de feitor, o próximo passo era mestre em categoria 2 e depois chegaria a mestre de linha categoria 1.

Com seus quarenta e poucos anos, me lembro que ele sempre teve um cuidado muito grande. Se jactava de que no trecho de sua responsabilidade nunca houvera acidente por negligência da equipe de trabalho com a qual chefiava. A equipe continha meu pai ou o encarregado de linha e mais cinco trabalhadores cuidando de 20km/25km de trecho de linha, incluindo uma estação. Eram conhecidos como a turma 43 e o interessante é que o cunhado dele era o chefe da turma 44, linha vizinha. Cerca de 15 km da estação do Rio Verde, onde morávamos (Itararé, SP).

Durante o período de aulas ficávamos na cidade e nas férias íamos todos para lá. Quando tinha feriado prolongado, às vezes eu e o meu irmão mais velho, João,ficávamos junto com o pai. O meu trabalho era fazer o almoço dele e ir levar onde estivesse trabalhando. Me dizia a direção e a distância para eu saber que horas devia sair. Com essa pouca idade, eu já fazia a comida do meu pai e ainda ia levar sozinho.

Esperto que era, aproveitava para ganhar uns troquinhos. Para que os outros trabalhadores não levassem comida fria de manhã, suas mulheres me pagavam um dinheirinho e eu levava a comida de todo mundo. Pegava um cabo de vassoura, botava assim nas costas, um prego nas duas pontas para prender os caldeirõezinhos e saia com eles pendurados no ombro, igual aqueles japonesinhos daqueles filmes antigos.

Um fato curioso e que me traz uma reflexão muito grande é que o meu pai foi um grande herói para mim e para toda a família, pois o vimos arriscar a vida dele para salvar a vida de uma pessoa. Essa pessoa, chamávamos de Dito Soldado e era o guardador de chave. 

Guarda chave na EFS era um cargo de quem trabalhava na estação.Quando os trens vinham em sentido contrário e iam cruzar com outro trem, um deles tinha que ficar no pátio da estação esperando o outro passar, pois a linha era única. A prioridade era o trem de passageiros que precisava ter liberdade direta, assim, os trens de carga aguardavam. Através de um sistema de telegrafia, se comunicavam entre estações para saber o tempo que o outro trem demoraria para chegar.

A responsabilidade era, através de um sistema mecânico, mudar o sentido da linha.A capacidade de espera era de até 3 trens. Em frente da nossa casa, ficava uma dessas Chaves. Ele puxava para um lado e os trilhos, que possuíam duas agulhas,saiam de um lado e encaixavam em outro trilho. O trem entrava por ali indo até o desvio para que o outro trem pudesse passar normal. Então, caso aquela chave não fosse alterada, o trem passaria direto e ia bater no outro que estava a caminho.

Na linha que passava pela nossa casa, tinha uma descida grande que escondia o trem, um corte nas pedras. Um dia, meu pai estava de folga no portão conversando com o Dito Soldado e um trem de passageiro estava prestes a chegar em cerca de 10 minutos, assim como um trem de carga, que tinha que entrar no pátio.O outro trem ia entrar no corte, não o veríamos por uns 2 minutos e quando reaparecesse, já estaria na frente de casa.

Observando que o maquinista do piloto estava buzinando um código que ele conhecia seguido daquela buzinada longa, o ouvimos dizer: “Saia da chave que esse trem tá desembestado, tá sem freio e não vai passar aqui”. O Dito Soldado respondeu: “Não! Eu não posso deixar ele passar, porque se ele passar vai bater no outro trem. Eu tenho que ficar aqui segurando. ”. Meu pai insistiu, insistiu e insistiu com ele até sair do portão onde estava para falar: “Vamos sair. Daqui a pouquinho o trem vai aparecer ali. Mesmo que você mude a chave, com essa velocidade que ele, não vai conseguir entrar no desvio e você vai morrer! Vai cair tudo em cima de você!”. O Dito Soldado insistiu que tinha que ficar, porque era a função dele.

            Assim, meu pai, guiado por Deus, sabendo que ele não ia conseguir fazer aquilo, atravessou a linha, o agarrou pela cintura e saiu correndo com ele pra um barranco de uns 4 metros. Neste momento, nós vimos o trem saindo já há uns 300 metros daquele corte com mais ou menos 10 vagões carregado de madeira, sacos de mantimento, de feijão e essas coisas. Foi uma questão de segundos e o trem descarrilhou por onde os dois passaram. A máquina passou, mas os vagões não. A queda fez uma montanha de umas duas casas de altura. Um vagão ficou empinado na traseira do outro.

Começamos a gritar e chorar: "meu pai morreu, meu pai morreu, meu pai morreu!". Cerca de 10 minutos, vimos os dois passando por cima das madeiras e agradecemos a Deus por isso. Segundo seu Octávio, a velocidade realmente não deixaria o trem entrar no desvio. Ele, percebendo que o guarda chave não ia sair e acabaria morrendo, o agarrou e correu. Quando o trem descarrilhou, disse que ficaram deitados no barranco e viram as toras passarem por cima deles. Se não fosse isso, mesmo saindo da chave, ambos teriam sido soterrados pelos destroços.

18 canhões modernos Krupp para a época, no pátio da Estação de Sengés a espera de ordem para bombardear Itararé.

Itararé 1930/ Vila Sorocabana - EFS 1930 


FONTES: 

Fotos e relato de acervo pessoal. 









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